Essa é a minha verdade. Essa é a minha história. A escrevi em terceira pessoa por achar mais fácil. Assim parece que não fiz algo tão abominável. Não me lembro de muita coisa depois do enterro do meu pai. O caso continua sem solução. Minha mãe acha que me internei aqui por livre e espontânea vontade. Acha que sofri um colapso nervoso após a morte dele. De certa forma foi isso que aconteceu. Essas paredes acolchoadas são para salva-lá. Se continuasse lá fora sei que acabaria fazendo o pior pra ela também. Meu remorso não vale de nada agora. Foi-se o tempo para desculpas. Nem sei se estou sendo totalmente sincero agora. Talvez apenas vindo para esse hospício com a esperança de ser salvo de mim mesmo. Sinto que devo ao meu pai a solução desse caso. E ambos sabemos como tudo deve acabar. Eu devia saber desde o inicio, mas acho que me neguei a enxergar a verdade. Ninguém pode ficar no topo para sempre. Enfim, acho que finalmente chegou a hora. Você tem sido bem detalhista então espero que minha morte ocorra do modo que estou escrevendo nessas paginas, seria decepcionante saber que seu ultimo trabalho baseado em uma história minha não foi executado com perfeição. Não sei como, mas sinto que você pode ler estas palavras que escrevo agora de maneira furiosa nesse papel manchado. Sempre falei que rostos não eram importantes, mas gostaria de conhecer a aparência daquele que me deu tudo aquilo que eu queria. Não sei como, mas posso sentir sua presença aqui, faça um trabalho bem feito e violento, é apenas o que eu te peço. Faça meu sangue jorrar. Sempre achei que tivesse medo da morte, mas agora que sinto as cortinas fechando sinto uma paz de espirito imensurável. Às nove horas de amanhã quando vierem me trazer o café da manhã faça que sejam vermelho sobre tudo. Prove para mim que, no final, não sou muito diferente daqueles que odiei por tanto tempo. Não tenho mais nada para escrever. É hora de cada um seguir seu caminho. Hora do medico enfrentar o monstro. Mas não tenho certeza sobre qual deles sou eu.

Manuscrito encontrado no quarto do paciente n°073 no dia 13 de agosto. Seu assassinato continua sem solução. O tribunal tomou sua suposta confissão como delírio psicótico.

Enquanto o clima na escola ia ficando cada vez mais calmo, o clima dentro de casa, que nunca foi exatamente agradável, ficava mais tenso. Seu pai devia ter se aposentado há dois meses, mas como ainda não conseguiu resolver o caso dos assassinatos resolveu continuar na ativa, por isso sempre chega em casa estressado e sua mãe, contrária a ideia do marido adiar sua aposentadoria, passa cada vez mais tempo no seu escritório de advocacia para evitar conflitos. Sua ira é plausível, esse é sem duvida o caso mais difícil que ele teve que enfrentar durante toda sua carreira e ele escolheu continuar à frente das investigações do que se submeter à vergonha de ter um caso não resolvido na sua ficha até então impecável. “Não há nenhuma ligação consistente entre as vitimas, alguns eram conhecidos entre si, mas apenas isso, os métodos usados também são diferentes, o que elimina a chance de ser um serial killer clássico. Todos os possíveis suspeitos possuem álibis já confirmados. Não foi encontrada nenhuma amostra de DNA do agressor então não tenho motivos pra acreditar que se trate de um único assassino, mas minha intuição diz que essa é a única explicação possível.”

Lendo por cima do ombro do pai enquanto ele organiza o material da investigação ele sente um misto de orgulho e pena. Orgulho por acreditar que chegou a utopia do crime perfeito. Após cometer os assassinatos basta apagar qualquer vestígio dos textos ou modificar a data em que eles foram feitos para depois que os corpos foram encontrados. Além dos textos pro assassino ele continua escrevendo seus textos habituais. Seu pai é seu álibi já que ele conhece o estranho hobbie do filho melhor do que ninguém. Mas não deixa de sentir pena do pai, esse caso está afetando seriamente sua sanidade. O garoto não pode ajuda-lo nesse caso. Apesar da sua frieza habitual com todos, ver seu pai se perder em meio a perguntas e duvidas criadas pelo próprio filho está o incomodando de uma forma que não poderia imaginar. Só pode esperar que o pai desista. Torce para que o pai perceba que aquele é um beco sem saída.

Mas ele sabe que isso não vai acontecer.

Até agora tinha conseguido evitar uma conversa mais seria com o pai sobre o caso. Mas agora seu pai faz perguntas e exige respostas. As mentiras ecoam pela sala vazia. O ódio entre os dois aumenta cada vez mais. A saliva quente do pai bate em seu rosto enquanto grita suas lamentações para o causador de tudo. Sente a pena se transformando em ódio. Não ouve tudo que o pai diz a seu respeito, mas reconhece algumas palavras: retardado, doente mental, incompetente. No final seu pai é igual a todos. Sente raiva dele por não saber quando parar.

Está sozinho no quarto. Ouve seu pai gritando da sala. Tem medo do que está prestes a fazer. A luz vinda do monitor torna seu rosto encovado. Os únicos sons no quarto são de seus dedos batendo nas teclas. Uma parte dele sente que deve parar. Mas a outra sabe que agora é tarde demais. Seu pai sai para o turno noturno na delegacia. O barulho do teclado cessa. Agora é apenas uma questão de tempo. O silencio o consome. Ele gostaria de pensar que dessa vez pode dar errado. Que seu pai está a salvo. Que tudo até agora foi apenas um sonho.

Ele matou o próprio pai. Essa é a verdade.

É uma manhã típica. Café com leite e torradas enquanto assiste o noticiário. Material de pesquisa para histórias. Quando está saindo para a escola uma notícia chama sua atenção. O corpo estirado em um beco qualquer. A saia rasgada. Os cabelos ruivos da vitimas desgrenhados. Os cortes profundos e irregulares, típicos de uma faca sem corte. O repórter não fala, mas ele tem certeza que não houve violência sexual. Sabe que se procurarem pelas proximidades encontrarão a faca. Uma faca grande, sem corte e com sinais de ferrugem perto do cabo. Pode ser apenas uma coincidência, mas ele sente que não. O delegado diz que ela foi morta, aproximadamente, às duas da manhã.

Eles estão errados. A pesquisa que ele faz ao banco de dados da policia durante o trajeto da escola só serve pra confirmar o que ele esperava. Há apenas um erro no relatório: a hora da morte.

Ele previu o futuro. Ele a matou enquanto escrevia no seu notebook. São suas mãos que deviam estar sujas de sangue. Mas ele não fez nada. O mundo está cheio de maníacos dispostos a matar sem motivo, mas mesmo assim ele se sente culpado. Alguns teriam se desesperado com a culpa.

Ele vê uma possibilidade. Como não aproveitar a chance de se livrar de todos que o incomodam apenas apertando algumas teclas? Seria louco se não o fizesse. Todos sempre falam de livre-arbítrio e de moral, mas todos esses valores caem por terra quando se tem a solução para todos seus problemas ao alcance da mão.

Afinal, antes de sermos humanos somos animais. Animais vis e sádicos que se alimentam da dor de seus semelhantes. Até o mais puro dos seres pode se corromper com o poder. Os mais repugnantes dos seres só podem sonhar com o dia que serão os caçadores ao invés da caça. Todos queremos estar no topo e não nos importamos com quem deixamos pras trás.

Para ele os dias seguiram normais, mesmo que o fundo da sala de aula fosse ficando cada vez mais vazio. Nada mais de emboscadas depois da aula, materiais roubados, roupas sujas de sangue e suas paradas pra vomitar o que o estomago ferido não consegue segurar. Bytes de informação eram transformados em corpos estirados e despedaçados de todas as formas possíveis. Ninguém poderia culpa-lo por falta de imaginação. Era apenas uma feliz coincidência ter encontrado alguém capaz de tornar suas palavras reais. Como o invasor mesmo disse, ele previa o futuro.

Ele estava no controle. Ele estava no topo, e quando se está no topo, ou você se mantem lá ou deve estar preparado pra encarar uma longa descida.

Ele se apoia em um poste para vomitar. Podia ter sido pior, se tivesse vomitado no ônibus ou na frente do colégio todos teriam visto. Vomitando apoiado a um poste em frente a uma viela ele é tratado apenas como mais um bêbado, mesmo que esteja usando o uniforme de uma das escolas mais caras da cidade. Um pouco de sangue se mistura aos restos do que ele comeu no café da manhã. “Hoje foi difícil.” Durante a infância fez aulas de kempo, então seria fácil para ele lidar com um cretino. Mas todo mundo é corajoso com dois capangas segurando a vitima pelas costas enquanto bate na barriga de um cara já desmaiado com um soco inglês.

“Merda, se eu não tivesse fingido desmaiar ia apanhar até agora. Aqueles montes de merda. Eu acabaria com eles em situações normais.”

Limpando o vomito da boca e mancando um pouco ele finalmente chega em casa. Esse foi apenas mais um dia normal de aula. Apesar das perguntas da sua mãe ele vai direto para seu quarto em silencio. Seus pais trabalham muito, ele não quer preocupa-los sem motivo. Em todas as escolas foi assim e ele sempre continuou em pé, não seria agora que ele perderia para um bando de imbecis.

Foi diagnosticado como portador da Síndrome de Asperger. Memoria fotográfica e grande facilidade em entender as fórmulas que os outros tanto penavam para entender eram benefícios, o fato de não conseguir se envolver facilmente com pessoas já não o incomoda mais. Portadores dessa síndrome normalmente apresentam interesse em algo especifico. Ele tem interesse em investigações de assassinatos. Ele mesmo não sabe por que, sabe apenas que essas investigações são uma das poucas coisas que prendem sua atenção.

Alguns anos atrás, ele foi um hacker promissor, mas depois de alguns vírus mandados para lugares do mundo todo ele perdeu o interesse. A mesma coisa aconteceu com o kempo, tênis de mesa, mecânica de carros e corridas de kart. Tudo não passou de um mero passatempo até ele achar algo que realmente o interessasse. No seu antigo endereço houve um assassinato brutal, obra de um serial killer até hoje não encontrado. O garoto que não havia mostrado interesse em nada até então ficou vidrado na movimentação da equipe da policia cientifica e até hoje ele escreve histórias com as mais diversas soluções para aquele crime.

No seu quarto, entre as revistas e livros dos seus antigos hobbies, há vários livros sobre psicopatas, crimes famosos, histórias de terror e creepypastas de diversos autores e de sua autoria. Se a sua síndrome já torna o convívio com as pessoas difícil, esse hobby apenas deixa as coisas piores, por isso ele é desprezado em qualquer lugar onde as pessoas conhecem suas preferencias. É conhecido como psicopata de tinta até mesmo entre os professores. Não se importa com isso. Pelo menos não mais.

Joga a mochila no canto e se põe a trabalhar no seu novo projeto: resolveu que quer entrar na deep web de qualquer forma. Dizem que é necessário o convite de alguém de dentro, mas ele está fazendo do jeito mais difícil. “Estou tentando entrar pela porta dos fundos em um lugar que não tem porta na frente” esse pensamento passa rapidamente pela sua cabeça enquanto usa suas habilidades de hacker e reconhece que os anos de inatividade o deixaram enferrujado. Já faz um mês que está nessa empreitada e sente que está realmente perto de conseguir.

Alguém toma o controle de seu computador. Ele não consegue rastear o IP do invasor. Códigos aparecem velozmente na tela e simplesmente param. Após dois segundos sem nenhuma ação, aparece a tela azul e o computador é reiniciado. Ele retomou o controle. O invasor não deixou rastros e não apagou nada. Tudo continua igual. As musicas, os textos, até mesmo seu programa continua do mesmo jeito de antes da invasão. Menos por um e-mail que ele recebeu enquanto o computador reiniciava. Sem titulo, apenas duas frases.

Você é muito bom descrevendo o passado. Já pensou em prever o futuro?

Tenta mandar um e-mail respondendo aquele estranho elogio, mas seu provedor diz que o endereço de e-mail do remetente não existe. Já que nada foi roubado ou apagado resolve deixar pra lá.

Seu pai, delegado de policia, sabendo de suas habilidades, permite que ele acesse informações confidenciais de investigações. Alguns de seus palpites já ajudaram a solucionar crimes menores, mas ele não se interessa pela solução do crime, apenas pela investigação. Vê um tópico sobre uso de armas brancas e pensa sobre o e-mail. Prever o futuro? Movido pelo tédio ou pela surpresa de, aparentemente, ter um fã escreve uma história inédita.

As palavras fluem com tremenda facilidade. O beco escuro. O carrasco encurrala sua vitima. O cheiro do pânico. A faca sem fio de corte e com sinais de ferrugem perto do cabo. A mancha de esperma na calça do agressor. A faca dilacerando a carne. Uma. Duas. Dez vezes. A crosta de sangue começando a coagular.

Mais cinco minutos e termina seu texto. Fica satisfeito com o resultado. Desliga o computador e se prepara para dormir. Pode tentar chegar na deep web amanhã. Isso se não perder o interesse enquanto dorme. Ele não sabe, mas já obteve êxito na sua missão.

Dedico essa história a todos os cretinos que tive o desprazer de conhecer.