Já passa da meia-noite. Só faltam dois dias para o inicio do resto de sua vida. Ele não pode contar com ninguém. Seus pais estão mortos e devido a discussões sobre a administração da firma não tem um relacionamento amigável com o ultimo dos seus irmãos. Aquela com a qual havia passado os últimos anos de sua vida estava sendo comida por vermes agora. “Até imagino o motivo do atraso na galeria. Se a policia examinasse sua virilha destruída aposto que achariam esperma de algum cliente ou ajudante. No final ela não passava de uma puta que encontrei durante uma viagem. Isso não importa mais.”

Ela o traiu. O conselho administrativo o traiu. Seu irmão adoraria vê-lo se perder no seu próprio desespero. Todos lhe deram as costas. Ele não pode culpa-los. Se pudesse também daria as costas para aquela figura decadente encolhida junto dos destroços de um notebook.

Gostaria de desistir de tudo, mas alguma coisa o impede. Entre uma serie de pensamentos acaba se lembrando d’O Iluminado. Já dominado pela loucura, Jack Torrance repete varias vezes coisas como “Venha e tome seu remédio como homem, seu cretino” e “Juro por tudo que vou fazer esse merdinha tomar o seu remédio” enquanto seu taco de roque assobiava pelos corredores escuros no meio das montanhas.

“Eles me traíram. Ele está brincando comigo. Que tipo de homem eu seria se não me vingasse?”

Se levanta e vai até um dos armários perto da televisão.

“Não tenho um bastão de roque, mas também tenho um jeito de obriga-lo a tomar seu remédio.”

Pega seu velho revolver Winchester e analisa sua empunhadura.

“Afinal que tipo de homem eu seria se não pagasse na mesma moeda?”

Já se fez essa pergunta a muitos anos. Talvez encontre finalmente a resposta.

“A matriarca Winchester era atormentada pelos espíritos das pessoas mortas por suas armas e mandou construir uma mansão com portas e escadas falsas, quartos invertidos e outras armadilhas para afugentar os fantasmas. Não preciso me preocupar com os mortos, no momento meu problema é um cretino que, tenho certeza, está vivo.”

Mira no aparelho de som e atira. O som grave ecoa pelas paredes. A casa permanece em silencio.

“Pelo menos por enquanto.”

A chuva ainda cai enquanto ele chora copiosamente em um canto da sua sala à prova de som. Não há problemas em um homem perder as esperanças e desabar, desde que ninguém esteja vendo. A única pessoa que o lembrava de que fora daquele jogo doentio havia um mundo feliz, agora estava morta. Destroçada, sua esposa o havia deixado sozinho. Não. Aonde quer que esteja o maníaco estava o observando, pronto para o próximo movimento nesse tabuleiro torto e gastos onde as peças estavam espalhadas.

Se senta na sua velha poltrona e começa o ritual de beber e fumar novamente. Teria que esperar o próximo movimento do seu oponente se quisesse realmente acabar com isso. Enquanto acende um cigarro seu notebook, em cima da mesa de centro, emite um bip. Havia recebido um e-mail. Alias dois.

O fato de seu próprio e-mail pessoal ser o remetente não o incomodava mais. Ficou surpreso por estar olhando para um possível final dos acontecimentos que começaram naquela manhã chuvosa de terça. Que tal irmos brincar no meu balanço favorito dia 25? Aquela pergunta infantil significava que em três dias tudo poderia acabar. “Finalmente esse merda vai sair do buraco sujo onde se esconde e me falar o seu preço. Em três dias vou voltar a ter uma vida normal de novo.”

Passa os olhos pelo titulo do segundo e-mail enquanto toma um gole de uísque e acende outro cigarro. Você choraria por alguém capaz de fazer isso? Tragando e soltando a fumaça de maneira preguiçosa ele pensa no significado daquela frase. “Aposto que ele espera que eu fique surpreso com isso. Devem ser fotos da época que Alice era uma prostituta. Isso poderia ser um choque para os nossos amigos, mas me casei sabendo da antiga vida dela. Mas realmente estou curioso para saber como ele as conseguiu.”

Um bocejo cortado pela tosse o faz perceber que está com sono. Aperta o botão para desligar o notebook, mas nada acontece. A seta do mouse começa a se mexer. “Tomou o controle do meu notebook. Pois bem, me mostre logo o que você quer.” Com um clique o segundo e-mail é aberto. Ao invés das fotos da sua mulher há apenas um arquivo anexado. Um vídeo de cinco minutos.

Depois de alguns segundos de estática era possível ver um homem entrando no foco da câmera, como se tivesse acabado de liga-lá. De repente, provavelmente colocada na edição do vídeo, começa a tocar Police Truck do Dead Kennedys. O homem para no meio da sala, olha para a direita e volta para a câmera. É possível vê-ló mudando a direção da câmera. O novo foco da câmera mostra alguns cavaletes, uma porta branca aberta para um quarto escuro e grandes janelas com vista para um jardim. “É o estúdio da Alice.” Mais alguns segundos de estática e o verdadeiro show começa. Embalados pela voz de Jello Biafra, sua mulher e um homem estão entrelaçados numa apresentação doentia de bondage. Tony já praticara bondage com sua mulher algumas vezes, mas sempre teve medo de machuca-lá de verdade. Mas lá estavam, imortalizadas em uma câmera, as imagens de sua mulher se derretendo em orgasmos enquanto apanhava de um desconhecido. A musica termina e começa novamente.

“Uma puta...”

Os gemidos aumentam à medida que aquele homem explora aquele corpo esbelto e branco que Tony achou pertencer a ele.

“Ela era uma puta quando nos conhecemos...”

Os gemidos são encobertos pela musica.

“... ela não podia ter filhos por causa de um aborto mal feito. Eu a amava. Eu fiz de tudo para ela ter uma vida normal...”

Seus longos cabelos loiros sobre a mesa fria no centro do estúdio. O homem esbarra em um dos cavaletes derrubando tinta pelo chão.

“... e ainda assim ela era uma puta suja!”

Agora acabou. Os gemidos da mulher e os acordes finais da musica se tornam agudos e destorcidos. O mesmo som é repetido cinco vezes.

O grito. O som de osso quebrando.

Seu grito ecoa nas paredes brancas do aposento. Aos seus pés, os destroços do notebook. A musica parou, mas continua ecoando em seus ouvidos. O grito e o som de osso quebrando.