A chuva que cai lava a cova recém-aberta. Homens e mulheres de preto se reúnem para a ultima homenagem para Alice Taylor Cougar. Parentes, clientes da galeria e conhecidos começam a se dispersar quando as primeiras pás de terra são jogadas sobre o vistoso caixão de mogno. Agora que todos foram embora, ele observa o trabalho dos coveiros em tampar aquela ferida aberta no meio do gramado da ala sul do cemitério municipal. Ele não se importa com a chuva lavando seu rosto e seus pontos abaixo do olho.

Começa a caminhar para o estacionamento. Não há mais nada para ver. O corpo destroçado de sua mulher jaz embaixo da lama agora. A logica lhe diz que foi apenas uma fatalidade, mas ele sabe que não. “Foi esse maldito. A pericia encontrou estranhos cortes nas tubulações do óleo de freio e direção hidráulica que não pareciam ser decorrentes do impacto do carro contra a encosta.” As lagrimas saem dos seus olhos e se confundem com a chuva que cai. “Devia chamar a policia. Mas não tenho provas. Os remetentes desses malditos e-mails são meus e-mails pessoal e profissional. O hacker que eu paguei não conseguiu descobrir o IP do cretino. Sei que a policia me considera suspeito. O que tiver que fazer, vou ter que fazer sozinho.”

Se estivesse calmo pensaria de outra forma. Mas a logica não é mais importante. Isso é uma guerra. E guerras são criadas e ganhas pela loucura.

Está sentado na poltrona de couro surrado na sua sala a prova de som. Na sua frente, além da bebida e do cinzeiro habituais, há vários álbuns de fotos espalhados pela mesa de centro e pelo chão. Enquanto o resto do mundo usa suas câmeras digitais Alice ainda era fiel ao filme. Ela revela as fotos no quarto escuro do seu estúdio. Estão lá os registros das ultimas viagens e festas. O gelo do copo já começa a derreter. “Alice realmente está demorando.”

Na parede ao lado da escada o sistema de som toca alguns acordes destorcidos. “Marilyn Manson, suponho.” Conforme o tempo passa as lembranças ficam mais velhas. Os primeiros anos de casamentos, a lua de mel na Alemanha, as farras da época de solteiro, os anos da faculdade, as festas do colégio, os jantares e reuniões familiares, as brincadeiras de criança, o balanço

(descreve uma parábola em direção ao barranco)

na ponta do velho carvalho.

Sempre que possível seu pai arrumava as pessoas para tirar uma foto seguindo algum padrão: altura, idade, parentesco, etc. enquanto sua mãe costumava escrever os nomes das pessoas no verso das fotos. Entre todas as fotos uma chama sua atenção: formando uma estupida pirâmide etária uma foto dele com os irmãos durante uma reunião de família. Eram cinco irmãos: Ele e Fred por serem os caçulas estavam nas pontas da pirâmide, Frank estava ao seu lado, Bety do lado do Fred e no centro o Will. Apesar dele e Fred serem gêmeos idênticos, uma pequena cicatriz abaixo do olho esquerdo de Fred tornava fácil à diferenciação. Essa cicatriz foi causada por um acidente de bicicleta poucas semanas antes da foto ser tirada. Vira a foto apenas para ver a bela e curvada caligrafia de sua mãe. “Da esquerda para direita. Meus amores: Frederick, Frank, William, Roberta e Anthony.”

Seu cérebro leva um segundo para perceber que algo está errado. Olha novamente a foto. Ao lado da irmã, que estava usando um vestido rosa e botas marrons, está aquela figura pequena usando camisa branca e shorts azuis. No rosto uma cicatriz imitando um sorriso que uma criança dá ao ser pega aprontando. Era Fred Cougar.

“Teria ela se engando? Eu, às vezes, fingia que era Fred e vice versa. Mas depois do acidente isso era impossível.” Respira profundamente. “É isso. A foto foi tirada de longe e o dia está meio escuro. Isso que eu acho que é uma cicatriz por ser só uma sombra. A cicatriz dele era pequena, logicamente não é possível vê-la em uma foto tão antiga.”

Mesmo a logica falando que se trata de algum engano seu desconforto aumenta cada vez mais conforme vê aquele pequeno garoto com uma cicatriz no rosto ser chamado por seu nome, Anthony, em cada vez mais fotos. Começa a falar sozinho, como que querendo convencer a sala que aquilo é um engano, e percebe que sua voz está pastosa. Estaria ele bêbado a ponto de imaginar uma cicatriz no seu rosto de 36 anos atrás?

“This isn’t me I’m not mechanical

I’m just a boy playing the Suicide King…”

Finalmente encontra aquilo que vai provar que tudo está bem. O álbum do período da sua internação no hospital psiquiátrico.

Era um prédio branco muito grande. O belo estilo barroco do prédio quase desviava a atenção das grossas barras de metal nas janelas e do cheiro de urina, sangue, fezes e carne queimada pelos corredores. Ao menos seu pai havia pagado o suficiente para que ele pudesse ficar na ala “humana” do hospital. Lá as grades eram mais finas e o cheiro podre era ofuscado pelo uso maciço de desinfetante.

Logo provaria que todas as outras fotos estavam erradas. Anthony Cougar nunca teve uma maldita cicatriz no rosto. Ali está. Já calmo pelo uso forçado de remédios os médicos tiraram uma foto para mostrarem os progressos no tratamento. O lençol branco puxado até o pescoço cobria as correntes em seus braços e pernas.

Está perdendo o controle de novo. Na foto, um garoto com olhar vago rodeado por enfermeiras. Ela está lá. Abaixo do seu olho esquerdo, com seus cantos repuxados, a cicatriz está sorrindo para ele. Está rindo dele.

Seus gritos são abafados pelas palavras saídas do sistema de som.

“Playing the Suicide King...”

Mesmo que Alice estivesse em casa ela não ouviria o pedido desesperado de seu marido por socorro. Ouviria apenas o silencio habitual da noite.

“Calma! Simplesmente eu estou bêbado e estou vendo coisas. Quando Alice chegar nós vamos transar. Vou fumar enrolado nas cobertas enquanto ela limpa o gozo das coxas. Amanhã quando estiver sóbrio vou ver que as fotos estão normais e eu não tenho nenhuma cicatriz no rosto.”

Está alimentando essa esperança quando o telefone toca.

― Sr. Cougar?

― Sim. Quem fala?

― Aqui é o delegado James. Sinto dizer, mas sua mulher sofreu um acidente de carro e morreu no local.

Ele derruba o telefone. A sua mentira já está desmoronando.

Antes de acusar de maneira direta os amantes dos unicórnios, os gays ambientalistas, vamos aos fatos:

“Unicórnio, também conhecido como licórnio, é um animal mitológico que tem a forma de um cavalo, geralmente branco, com um único chifre em espiral. Sua imagem está associada à pureza e à força. Segundo as narrativas são seres dóceis; porém são as mulheres virgens que têm mais facilidade para toca-lós.

A Virgem e o unicórnio. Domenico Zampieri, séc. XVII. Palazzo Farnese, Roma. (Afresco)

Tema de notável recorrência nas artes medievais e renascentistas, o unicórnio, assim como todos os outros animais fantásticos, não possui um significado único.

Considerado um eqüino fabuloso benéfico, com um grande corno na cabeça, o unicórnio entra nos bestiários em associação à virgindade, já que o mito compreende que o único ser capaz de domar um unicórnio é uma donzela pura, ou qualquer pessoa que deixe sobressair o seu lado feminino com freqüência de tempo superior a 60%.

Presente em varias lendas medievais remete a uma criatura pura com poderes curativos.”

Esse trecho foi retirado daqui.

Como não se pode confiar em apenas uma opinião procurei outra fonte:

“Unicórnio são seres assexuados, homossexuais e fofinhos que gostam de galopar alegres e felizes sob um lindo e gay colorido arco-íris. Os unicórnios são muito admirados principalmente pelas meninas e pelas bixas loucas por causa de sua beleza e sua áurea feminina.

Acredita-se que os unicórnios descendam dos macacos, mas existem ramos que dizem que na verdade eles seriam cavalos casados com éguas vagabundas e ramos acreditam que unicórnios na verdade não existem.

Mas também acredita-se que os unicórnios são os cavalos de Satã. São seres que apresentam uma beleza exterior, mas são podres no interior. O chifre deles é o indício de que são criaturas vindas do inferno para fazer o mal na terra e ceifar sua alma para o DEMÔNIO!!!

O unicórnio é o ser que criou a raça homossexual por isso na idade média foi caçado e morto. Se transformando em churrasco que junto com sal grosso e salsa destruía o apêndice das bruxas, depois foram queimadas na fogueiras eles foram se reestabelecendo no mundo, no mundo só não, na Bahia.

O unicórnio é um animal que vive no Acre e no inferno lugar onde as crianças da Caverna do Dragão estão perdidas. Apesar do unicórnio parecer um ser puro e inocente ele é extremamente esperto e maligno.”

Esse trecho foi retirado daqui.

Percebe-se que há certas discordâncias em relação a o que seria realmente os unicórnios. Alguns os tratam como seres mágicos capazes de ajuda as pessoas, já outros dizem que unicórnios são apenas manifestações do lado feminino das pessoas,ou seja eles são gays. Talvez eles sejam como os gatos: aparentemente fofinho e bonitinhos por fora, mas na realidade são armas mortais prontos para dominar o mundo.

E agora? O que você acha?

Passaram-se poucos minutos do meio dia quando ele estacionou seu Mercury na garagem de casa. Na caixa ao seu lado alguns retratos e papeis que ele julgou importantes. Limparia o resto da sala na segunda feira. A garagem, sempre tão limpa e organizada como um hospital estava com uma camada de poeira sobre tudo, já que ele não havia ao menos entrado nela desde o incidente com a chave. No local onde aconteceu era possível ver gotas do seu sangue no chão de madeira. Inconscientemente toca os pontos abaixo do olho. Seu sangue

(fluindo pelo corte na cabeça... tingindo a água limpa do rio)

pequenos pontos vermelhos no chão cor de terra.

Olha para o outro extremo da grande garagem e vê a vaga vazia do Beetle amarelo de Alice. Nunca andaria naquela coisa. Quando saiam juntos usavam seu Mercury ou a velha RS2 Avant azul guardada junto do Beetle. Aquele monte de aço amarelo não lembrava em nada seu velho Bug preto fosco, companheiro de tantas saideiras durante a faculdade. Talvez, quando estivesse passando pela crise da meia idade e estivesse procurando incansavelmente a juventude perdida, comprasse um Beetle igual da esposa. Mas agora não.

Atravessa de maneira automática o gramado e toda a casa e vai direto ao bar do lado da cozinha. Acende um cigarro enquanto prepara um coquetel com saquê que vira na internet. Começaria a aproveitar essas férias forçadas de porre.

Estar sozinho na grande cozinha o deixa um pouco deprimido. O silencio pesado do local o faz pensar como se ninguém nunca mais fosse entrar ou sair por aquelas portas. É tirado de seu devaneio pela campainha ritmada do telefone. É Alice.

― Oi, Tony. O que você está fazendo em casa a essa hora?

― Você tinha razão. Fui chutado. E agora estou tomando um porre enquanto tento aproveitar minha nova vida de rico esnobe.

― Bom pra você. Enquanto isso, a plebeia aqui tem que trabalhar para garantir o pão de amanhã.

― Sabe – imita a voz de um cafetão de um seriado de TV – em troca de alguns favores sexuais eu poderia melhorar a sua situação financeira.

― Vou pensar – ouve risadas do outro lado da linha – Só liguei para avisar que vou ficar até mais tarde na galeria. Talvez chegue depois das onze.

Depois de mais alguns minutos de conversa trivial se despedem e a casa mergulha novamente no mais completo silêncio, só quebrado pelo barulho das bebidas sendo misturadas e pela tosse seca cada vez mais frequente. De certa forma está calmo, mas pode sentir a loucura crescente se esgueirando e preenchendo cada canto da casa enquanto o saquê desce queimando sua garganta e deixa um gosto amargo em sua boca.

―Tem certeza que está tudo bem você ir para a firma assim? Não quer esperar mais alguns dias?

Tinha a sua frente um prato raso com bacon e ovos. Sentada a sua frente, sua mulher continuava a falar como se preocupava com ele e continuava a perguntar se estava bem. Ele simplesmente não ouvia o que sua mulher dizia. Em sua boca um cigarro pela metade. Antes disso nunca havia fumado durante as refeições. Antes disso só fumava quando não tinha nada para fazer e depois de transar. Sempre achou cômica a imagem dele fumando enquanto sua mulher limpava o esperma das coxas. Como nos filmes antigos.

Mas agora fumava porque precisava.

Se houvesse algum espelho na sala de jantar poderia ver o mesmo que os olhos azuis de Alice fitavam. Um rosto vazio com a barba por fazer, um sorriso já amarelado pelo uso constante dos cigarros e um estupido corte abaixo do olho direito. Estava debaixo do carro quando a chave que estava usando para soltar um parafuso espanado escapou e acabou rasgando a carne de seu rosto. Não foi um corte grande, mas achou melhor ir ao hospital por precaução. Levou dois pontos. Provavelmente não ficaria cicatriz.

(teve sorte de alguma pedra não acertar seu olho, poderia ficar cego. Ao invés disso, ficou com um pequeno sorriso abaixo do olho esquerdo)

De tudo isso restou apenas uma foto tirada por Alice na saída do hospital. Ele se sentiu um idiota ao tirar a foto e se sente um idiota toda vez que a vê na mesa de centro da sala de estar. Parecia a foto de um soldado que havia curado suas feridas e pronto para continuar matando pelo seu país.

Nada disso importava. Aparentemente o maníaco o estava seguindo. Quando chegou do hospital recebeu outro e-mail: “Agora que somos iguais novamente você teria coragem de fazer aquilo de novo?” não importava que configuração ele usasse, esses estranhos e-mails nunca eram mandados para a lixeira.

“Esse maníaco não é só um bostinha. Ele sabe o que tá fazendo. Ele deve ter feito uma longa pesquisa para saber que meu irmão tinha uma cicatriz abaixo do olho esquerdo. Como ele podia saber disso?”

―... você mesmo fala que o conselho está procurando um motivo para te desligar da empresa.

Isso é verdade. Nos dias de hoje seria impossível manter uma firma dessas proporções sem capital externo. Logico que ele era o maior acionista, mas a politica da firma permitia que ele fosse desligado das funções na diretoria. Isso não afetaria suas ações, mas sentia que devia manter o único Cougar ativo na empresa. Devia isso a seu pai.

― Eu sei. Por isso mesmo eu tenho que ir. Isso é uma coisa estupida que eu chamo de orgulho masculino.

― Agora você parece o homem com quem me casei. Ah, já ia me esquecendo – entrega uma notificação em suas mãos – parece que a fazenda dos seus pais foi liberada do período de quarentena.

Ficou realmente surpreso. Seu pai, homem pratico e racional, havia recusado vender a fazenda para o governo após o acidente na usina nuclear da região. Isso foi há 29 anos. Dificilmente conseguiria vender a fazenda por um bom preço. Pelo jeito aquelas terras radioativas continuariam na família Cougar.

Sua mulher tinha razão. Durante uma reunião que durou 5 minutos havia sido destituído da sua função no conselho administrativo. Sabia que quando eles tivessem problemas voltariam como o rabo entre as pernas pedindo ajuda. Iria deixar as coisas como estavam no momento. Enquanto esvaziava sua mesa jogou fora a bituca do quinto ou sexto cigarro do dia.

“Se tiver um pouco de sorte talvez eu morra de câncer antes de ficar louco. Vou ser enterrado com um terno branco com os braços

(e pernas dobradas em ângulos estranhos)

cruzados e os dedos do meio levantados.”

Começa a rir, mas a tosse áspera logo vem lembrar que o câncer está realmente perto. Mas a loucura está ao seu lado.