Porque me tornei escritor?

Numa roda de amigos essa pergunta me foi dada
E por cada um deles foi justificada

Primeiro a falar, com muita convicção
Mesmo com a voz pastosa e um copo na mão
Nickolas, cineasta semi-frustrado
Morador de Paulínia
Num quarto e sala alugado
”Não foi para pegar mulher, com toda a certeza
Pois nem o maior épico é capaz de lhe dar beleza
Nenhuma mulher deve ter dado a palavra
Caio, suas licenças poéticas me deixam em ponto de bala!”

Sua imitação de mulher menstruada
Arranca boas risadas
Quando todos se acalmam
Com um cubano entre os dentes
Bruna tenta controlar uma mesa de dementes
Tem casa, carro, filha e uma esposa ardente
Nada mal pra uma ilustradora independente
”Ser popular também não deve ter sido o objetivo
Ameaças de morte e processos enchem os seus arquivos
Desafetos na família crescem de maneira exponencial
Embora não ache isso mal
Apenas encurta sua lista de natal”

A maioria está bêbada demais até mesmo pra rir
Eu e meu terno surrado teremos a chance de nos redimir
Escritor por profissão
Hobbie: ficar enfurnado numa repartição
Olho pros lados para checar a plateia
Prestes a dizer algo que ninguém espera
”Prestem atenção
É difícil de crer
A minha verdadeira missão
É mostrar que o ‘porque’ acima deve ser”

A maior festa que se tem noticias. Desde os tempos antigos. Se você acha que se diverte indo nos points badalados dessa cidade fétida, saiba que ainda não viu nada. Apenas gastou dinheiro como um imbecil. Pergunte para quem realmente sabe das coisas “Onde posso me divertir?”. Nos galpões do antigo bairro industrial será a resposta. Ou, até mesmo, nas ruinas do velho castelo. Mas, se você não for o tipo certo, ele simplesmente vai levantar e você nunca mais verá aquele mendigo. Sou o organizador dessa festa, sou eu quem decide quem entra e publicidade não é necessária.

Não espere nada espalhafatoso nem requintado. Apenas um velho galpão industrial com as paredes sujas de fuligem. Se pesquisar um pouco vai descobrir que, durante a Revolução Industrial, o antigo dono reprimiu uma greve trabalhista. Como? Trancou as portas e, sentado confortavelmente em sua poltrona, atirou em todos os funcionários. A firma funcionou por mais 30 anos, até o dono morrer sem deixar herdeiros. Sentado nessa mesma poltrona, me sinto em êxtase, numa viagem que nem a mais pura metanfetamina é capaz de gerar. O cheiro de pólvora continua fresco mesmo depois de todos esses anos. Talvez até tenha conhecido o antigo dono, mas a idade e os exageros da vida moderna já me tiraram as velhas memorias.

Nada de carros imponentes e confortáveis. Alguns chegam a pé, imaginando que no fim da noite estarão tão chapados que ficaram incapazes de operar os três pedais, outros em pequenos hatchs mais velhos que seus motoristas, que se acham muito habilidosos e acostumados com qualquer tido de droga moderna. Ambos estão errados. Ninguém sai daqui, a menos que eu queira. Mas enquanto o rock for pesado e a bebida de graça, ninguém se preocupa em ir embora.

A temática de hoje é festa à fantasia, mas a grande maioria está usando roupas casuais e banais, o que me faz sentir falta da época dos longos vestidos e dos trajes de fino corte da aristocracia francesa. Vejo um rapaz com um moletom surrado e creme de barbear na boca simulando um lobisomem com raiva, um gordo espinhento apertado num velho terno puído numa caracterização chula do Drácula, uma moça com olhar injetado e uma fantasia minúscula de diabinha. Numa busca rápida encontro mais seis ou sete jovens em fantasias tão execráveis quanto às primeiras. Esses jovens. Eles não se importam com isso. Ficam felizes com musica boa e metanfetamina tão pura que deixaria o sr. White com inveja. E eu dou isso para eles. Isso e muito mais, mas também preciso de alguma coisa em troca.

Está chegando a hora. Poderia ter feito isso logo que entraram, mas sou o organizador dessa festa e as coisas acontecem do jeito que eu quero. Já estou velho, posso me dar esse tipo de diversão. Rebel Monster, da banda dinamarquesa Volbeat, sai dos alto-falantes e faz as paredes vibrarem. Faltam trinta segundos pra meia noite quando as maquinas de fumaça começam a funcionar. Poucos reparam e estão todos alucinados de qualquer forma, acham que é apenas mais uma viagem, que o moletom está se transformando em pelos e a espuma borbulhante começa a escorrer de sua boca, que as pernas da diabinha se fundem numa cauda com escamas e asas ossudas surgem das costas de vários convidados. O pânico demora alguns instantes para se instalar, com os gritos e lamentos de jovens drogados que não sabem ao certo que está acontecendo. Tudo está acabado antes mesmo da musica acabar. O cheio de sangue e carne crua é forte e preenche o velho galpão, mas sentado nessa velha poltrona o cheiro de pólvora ainda é mais inebriante.

E essa continua sendo a melhor festa de todos os tempos. Pergunte para quem realmente sabe das coisas. Eu vou confirmar. E se você tiver sorte, não vai ser convidado.